Joseph Campbell foi um notório estudioso de mitologia, famoso por livros como O Poder do Mito e O Herói de Mil Faces. Teve entre suas influências Heinrich Zimmer, historiador de arte religiosa indiana; Thomas Mann, escritor alemão e vencedor do Nobel de Literatura; e Jiddu Krishnamurti, filósofo indiano.
Em O Poder do Mito, Campbell descreve quatro funções do mito, formas pelas quais ele afeta e molda a realidade humana. Poderíamos chamar essas funções também de finalidades espontâneas do mito. Cada um atua em uma esfera da sociedade ou da necessidade humana em relação com o seu meio exterior ou interior.

FUNÇÃO MÍSTICA
“[…]é disso que venho falando, dando conta da maravilha que é o universo, da maravilha que é você, e vivenciando o espanto diante do mistério. Os mitos abrem o mundo para a dimensão do mistério, para a consciência do mistério que subjaz a todas as formas. Se isso lhe escapar, você não terá uma mitologia” (CAMPBELL, 1990, p. 44).
O aspecto místico de uma mitologia se refere àquilo que intuímos que existe, mas não possui substância concreta. Nos primórdios da humanidade, ela fez dos mitos um porto seguro para a nossa dúvida e medo diante da realidade inexplicável. Somos criaturas complexas, talvez por sermos homo sapiens sapiens, homem que sabe que sabe. Essa condição é torturante do ponto de vista racional, mas mitos e contos de fadas possuem um certo fator “mágico”, fascinante, que toca o inconsciente em um nível que a consciência não acessa
Apesar da constante busca por respostas, é importante reconhecer o aspecto misterioso do universo e se curvar a ele. É apenas reconhecendo que existe algo maior que nós, que podemos realmente crescer ao tomarmos consciência de nossa pequenez.

FUNÇÃO COSMOLÓGICA
“[…] a dimensão da qual a ciência se ocupa – mostrando qual é a forma do universo, mas fazendo o de uma tal maneira que o mistério, outra vez, se manifesta” (CAMPBELL, 1990, p. 44).
Essa função do mito constela harmonicamente o mito com a realidade de tal forma que elimina as dissonâncias entre eles. O mito forma uma imagem do universo compreensível na sua dinâmica antes de possuirmos um método cientifico para explicarmos o mesmo. Diferente da função mistica — que busca se relacionar com o mistério em sua natureza misteriosa e transcendente —, a função cosmológica busca explicar a realidade e produzir um certo controle sobre o que antes era mistério. Um exemplo são os diversos mitos sobre as estações do ano ou de criação do universo.
É através dessa função do mito que preenchemos a lacuna de origem da humanidade e damos sentido a quem somos e ao lugar em que nos encontramos no universo.

FUNÇÃO SOCIOLÓGICA
“A terceira função é a sociológica – suporte e validação de determinada ordem social. E aqui os mitos variam tremendamente, de lugar para lugar. Você tem toda uma mitologia da poligamia, toda uma mitologia da monogamia. Ambas são satisfatórias. Depende de onde você estiver. Foi essa função sociológica do mito que assumiu a direção do nosso mundo – e está desatualizada” (CAMPBELL, 1990, p. 45).
Como diz o próprio Campbell, essa função do mito corresponde à validação da ordem social. Ela pode ser observada nos detalhes regionais e temporais dos mitos. Existe um certo substrato comum aos mitos e seus deuses, como o amor, a morte, a guerra, a maternidade, a paternidade, o casamento, a inteligência. Mas também existe o tratamento particular que cada povo dá a essas questões universais.
Assim, mitos como as três esposas de Xangô, validam a poligamia, enquanto as traições de Zeus validam a monogamia; o nascimento de tipos de pessoas diferentes das partes do corpo de Brahma valida o sistema de castas hindu.
Quando Campbell diz que essa função está desatualizada, é porque diversos mitos, hoje, fundamentam sociedades desiguais e preconceituosas. Certas discussões ainda acontecem tendo como argumento a função sociológica de alguns mitos com milhares de anos de idade. Arrisco dizer que a função sociológica do mito pode ser a mais perigosa, visto que as funções do mito se encontram nele ao mesmo tempo, portanto, cabe ao sujeito identificar e fazer juízo de cada aspecto do mito… ou não. Existe sentido simbólico e psicológico no mito de Pandora ou de Adão e Eva, mas sua função sociológica claramente prejudica a imagem da mulher perante a sociedade. Isso porque dependendo da psique com a qual o mito entra em contato, ele pode ser entendido em vias concretas ou simbólicas, como imperativo comportamental em sociedade ou método de autoconhecimento e aperfeiçoamento individual. E na via simbólica, temos a próxima e última função do mito.

FUNÇÃO PEDAGÓGICA
“Mas existe uma quarta função do mito, aquela, segundo penso, com que todas as pessoas deviam tentar se relacionar – a função pedagógica, como viver uma vida humana sob qualquer circunstância. Os mitos podem ensinar lhe isso” (CAMPBELL, 1990, p. 45).
Essa função está relacionada aos temas universais da humanidade dos quais falei anteriormente. Nos situam diante de novas experiências e nos tornam compreensíveis a nós mesmos. O que é essa raiva dentro de mim, o que é o amor… o casamento de Psique, o trabalho repetitivo de Sísifo, entre outros.
A função pedagógica do mito é o que nos aperfeiçoa psicologicamente. Devemos a ela a inspiração e conforto que nos proporciona diante de situações angustiante e ameaçadoras. Ela transpassa a adequação social, e dá sustento à humanidade que possuímos e somos. Ao invés de produzir veredicto sobre as pessoas com quem nos relacionamos, ela nos possibilita nos avaliarmos diante das relações com o mundo, nossos valores, necessidades e comportamentos. Por isso Campbell afirma que ela é capaz de ensinar como viver uma vida humana sob qualquer circunstância.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.